Você já deve ter visto que, em escolas, empresas, shoppings e diversos outros espaços públicos, a porta dos banheiros tem um vão que permite ver os pés de quem os usa. Essa é uma herança da Revolução Industrial, em que o tempo no trabalho passou a ser controlado segundo a segundo, mesmo no que se refere às necessidades humanas mais básicas.
Essa lógica nunca foi totalmente abandonada, sobretudo na área fabril. Mas, diante da covid-19, ela voltou com tudo e atingiu inclusive setores que funcionavam sob modos mais cooperativos, dinâmicos e até mesmo lúdicos. Com o home office, os métodos de monitoramento sobre os funcionários se tornaram mais refinados, e a liberdade no mundo do trabalho (e em casa) diminuiu em muitas organizações.
Entenda por que várias empresas que antes apostavam em bem-estar corporativo agora se tornaram alvos de críticas em relação ao modo de trabalho em casa durante a pandemia.
O setor de serviços é responsável por 70% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil. Isso quer dizer que a maior parte dos trabalhadores do país não passa o dia diante da esteira, em uma fábrica, e sim em escritórios e no comércio. Mas, apesar disso, o controle cronológico não difere da antiga forma de trabalho.
As empresas têm diversos mecanismos para garantir a gestão do tempo. Isso vai desde o tradicional cartão-ponto, que também está presente no home office sob um similar online, até políticas menos amistosas.
O tempo no banheiro é um exemplo de controle que não foi abandonado. O telemarketing é um ramo de atividade que tem esse tipo de pressão: mesmo em muitas empresas reconhecidas e premiadas pela qualidade do trabalho, essa prática persiste.
Isso se tornou ainda mais grave com a chegada do home office, caracterizando em muitos casos o pior de dois mundos: com uma tecnologia refinada e extensiva, foi possível levar o patrulhamento incessante para dentro da casa de cada trabalhador, que agora precisa conciliar demandas pessoais e profissionais no mesmo tempo e espaço, incluindo cuidados com filhos, pets e outros fatores.
As empresas têm implementado ainda diversos outros mecanismos de controle das atividades profissionais, como reuniões, controle de ponto, webcams ligadas e programas “espiões”. Essas práticas têm aberto um debate sobre os efeitos do controle abusivo das pessoas.
Do ponto de vista jurídico, a empresa tem direito a esse controle, sobretudo se os equipamentos de trabalho forem dela. Diferentemente do trabalho remoto, regulado por legislação específica, o home office funciona da mesma forma como na organização. O único elemento que muda é o espaço físico.
Mas, fora do mundo do Direito, há outras questões em jogo. O ambiente doméstico passou a ser regulado por uma lógica fabril, ainda que o corpo não seja uma máquina nem o trabalho dependa de uma. E, como ninguém é de ferro, as consequências para a saúde vem.
E não apenas para a saúde física. Assim como Alice cai em um mundo desprovido de sentido ao seguir o coelho constantemente atrasado, também o trabalhador pode se desconectar do significado da sua atividade quando é sugado por um turbilhão de demandas em home office. Ainda mais em uma pandemia que envolve distanciamento de laços afetivos e até mesmo perdas e luto.
O filósofo francês Michel Foucault fez uma alerta, ainda na segunda metade do século XX, sobre um fenômeno conhecido como panoptismo: o hábito de controlar tudo, como no livro 1984, de George Orwell. A questão se refere ao fato de produzir a sensação de sempre estar sendo visto, mas ninguém sabe se uma câmera de segurança está de fato filmando, mas, fica-se a dúvida.
Foucault é atual: uma matéria da revista Você SA ilustrou como as distopias se tornaram reais no mundo do trabalho pandêmico, levado para as residências. De programas espiões até cabines com sensores biométricos e dispositivos que medem as expressões faciais do funcionário, o cenário do home office é digno de Black Mirror e aponta para uma tendência que parece definitiva.
É difícil bater o martelo sobre o futuro do trabalho remoto, mas, curiosamente, esses mecanismos são produzidos por gigantes de software empresarial que até ontem instalavam mesas de sinuca e estações de videogame em seus escritórios abertos. Só nos resta esperar para ver que futuro essas tendências trarão no mercado.
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Fonte: Você SA